quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Crise, ética e política - II

Pessoal, como indicação de leitura da colega Joseane Canterle (3o semestre). Vale a pena. Trata-se de um artigo do portal Ibase. Abraços,

Crise, ética e política (parte II)
Paulo d’Avila Filho*

Caracterizar uma suposta crise como uma crise ética implica tomar posição com relação ao sentido atribuído à ética. Um dos grandes problemas a se enfrentar em seguida é como conciliar uma perspectiva moral, construída a partir de princípios éticos forjados na contemplação do mundo das idéias, portanto, fora da caverna – para usar, mais uma vez, a alegoria clássica de Platão –, e a vida ordinária dentro da caverna. A questão espinhosa é como compor uma relação entre princípios éticos abstratos e agir ordinário ou simplesmente entre ética e política.

Para começar, é necessário definir sobre o que se fala. Meu ponto de partida é o de que a ética, assim como a estética e a lógica, é um campo de estudos da filosofia, que se debruça sobre as diferentes narrativas a respeito do controvertido ponto. Essa percepção tem por conseqüência a admissão de uma pluralidade de perspectivas éticas a orientar a conduta moral humana. O debate sobre a ética se concentra, então, na discussão em torno dos princípios éticos ordenadores da conduta moral.

Max Weber, em um dos mais belos textos produzidos pela literatura clássica de ciências sociais, “A política como vocação”, enfrenta o problema da delicada relação entre ética e política. Weber delimita duas grandes formas de se conceber os princípios norteadores da conduta moral. De um lado, estariam as perspectivas movidas pelo que chamou de ética da convicção e, de outro, uma abordagem que leva em consideração as conseqüências da minha ação, a qual chamou de ética da responsabilidade. Ouso discordar da classificação de Weber, concebo não duas, mas três formas de organizar os princípios morais que orientam a conduta moral contidas em seu texto.

O primeiro deles está ancorado modernamente em uma discussão realizada por Kant na qual “a representação de um princípio objetivo que constrange a vontade é chamada de um comando da razão, e a fórmula desse comando é o imperativo” que nos orienta ao agir moral. Dentre os imperativos, deve-se distinguir entre os “hipotéticos” e os “categóricos”.

Os primeiros representam a necessidade prática de uma ação possível para atingir algo que se pretende; os segundos declaram que uma ação é objetivamente necessária em si mesma e não como meio para se atingir um fim qualquer. No primeiro caso, oriento meu agir em função de algo externo e contingente que almejo. No outro, conduzo a minha ação a partir dos princípios éticos racionalmente concebidos. A premissa é que de um princípio bom só pode derivar uma atuação moralmente boa. Ao consultar a razão, eu atuo conforme o dever, independente das circunstâncias e, assim, constituo-me como indivíduo livre, que não depende das circunstâncias para guiar sua ação.

A segunda perspectiva se desloca da aplicação metafísica e dogmática de um princípio racional anterior como orientador da ação para uma concepção que incorpora a dimensão da política como categoria de mediação necessária entre os bons princípios e os fins colimados. Assim, a compreensão maquiaveliana da relação entre os princípios e o agir sugere que eu seja forçado a usar de um meio moralmente questionável para atingir um fim eticamente desejável. Eu reconheço que o meio é moralmente condenável. Porém, eu o submeto não ao crivo dos princípios abstratos, mas ao critério da consecução dos fins almejados. Assim, o princípio que ordena minha ação está alicerçado na eficiência da conduta com relação aos fins.

Uma outra abordagem da relação entre ética e política é a de Weber, que propugna a ética da responsabilidade como forma de permitir possíveis aproximações entre meios e fins, princípios e conseqüências. Na ética da responsabilidade, o princípio ordenador da minha atuação é a antecipação de suas possíveis conseqüências. Assim, eu preciso cotejar os princípios racionais abstratos com os fins colimados e os resultados esperados da ação.

Nos três casos, eu posso organizar a sustentação da minha conduta moral com base em um suposto interesse público. Seja associando-o ao imperativo categórico, assim eu ajo conforme o dever porque isto é de interesse público; aos fins desejáveis, e este fim poder ser a manutenção da ordem pública, portanto um interesse comum; ou às conseqüências da minha ação, antecipando qual a melhor ou a “menos pior” das alternativas para o que eu considero como bem comum.

A diferença da terceira e instigante abordagem para as duas anteriores é que nela não há um “porto seguro” que me proteja dos potenciais efeitos perversos da escolha humana. Na primeira, independentemente das conseqüências dos meus atos, estou seguro, pois agi conforme o dever, de acordo, portanto, com o princípio racional abstrato. Isto me absolve. No segundo, a cápsula protetora são os fins. A despeito dos efeitos produzidos pelos meios escolhidos, minha conduta se justifica pelos fins a serem alcançados.

Na ética da responsabilidade de Weber, perde-se a proteção alheia. Os parâmetros morais de julgamento das conseqüências das opções seguidas são de responsabilidade única e exclusiva do próprio ator, que não tem onde ou no que se escorar, a não ser no seu julgamento imperfeito. Por esta razão, a pessoa pública é freqüentemente convidada pelas circunstâncias a ter que tomar decisões que implicam escolhas trágicas entre o pior e o “menos mau”.

O problema concernente a todas essas possibilidades é que sempre existirá margem para discutirmos quais são os verdadeiros princípios que devem reger a conduta moral, se, e em quais circunstâncias, devem ser relativizados, assim como que fins são desejáveis e que meios seriam socialmente toleráveis para atingi-los. Devemos considerar, também, enorme ausência de consenso social em torno do que seria a melhor ou a pior conseqüência de uma determinada ação.

O universo acadêmico e os fóruns dedicados a essas intrincadas questões permanecerão abertos ao debate, às mesas de bar, aos botequins e aos encontros sociais também. Mas constitui desafio delicado estabelecer padrões morais de conduta política que devem ser obedecidos por todas as pessoas, além do que pode ser prescrito nas leis.

Poderíamos adotar duas alternativas. Uma seria tentar produzir um consenso normativo, para além do respeito ao direito positivo, sobre os princípios que devem orientar as escolhas políticas de quem decide. O perigo seria a tentação autoritária de forçar um desfecho, produzindo, como resultado potencial, um quadro autoritário e/ou totalitário.

A segunda alternativa é submeter os políticos de carreira e as ações das pessoas públicas em geral ao escrutínio público da forma mais ampla e visível possível, procedimento usualmente chamado de democracia. Quanto mais visibilidade pública e melhores mecanismos de controle democráticos e prestação de contas, além das condições de intervenção social na política, tanto melhores seriam as chances do julgamento público do ator político. Nosso problema não é uma crise ética, mas o necessário caminho de aperfeiçoamento constante das instituições democráticas. Este me parece o bom diagnóstico, essa me parece a boa agenda propositiva.

*Cientista político, professor do Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio

Publicado em 9/11/2007.

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