terça-feira, 30 de outubro de 2007

Crise, ética e política (parte I) - LEIAM!!!

Do portal do IBASE (clique aqui se quiser ler no "original").
Especial para quem faz a DCG de Política... Abraços galera (e a laranja mecânica heim???)

Crise, ética e política (parte I)
Paulo d’Avila Filho*

"Vivemos uma crise ética sem precedentes neste país” é um dos bordões mais repetidos nos últimos tempos. O bordão pretende explicar, desde os chamados “escândalos do mensalão”, a recente absolvição de Renan Calheiros no Senado Federal. Em alguns momentos, ao diagnóstico da crise ética se associa o receituário da ética na política. Quero crer que o apelo se volte para quem julga o réu e não para o réu em si. Pois não me parece fazer sentido apelar para os juízos morais de pessoas que, por ventura, tenham cometido malversação de verbas públicas ou afins.

A relação entre ética e política é um dos mais antigos e controvertidos temas da filosofia política. Na conjuntura, constitui um tema dos mais espinhosos. A dificuldade no trato com o tema se deve, sobretudo, à falta de consenso em torno dos parâmetros do debate público.
Para começar, vamos aos termos envolvidos: o que se entende por ética, por exemplo, e o que se quer designar como crise ética. Sobre a idéia de crise ética, creio que desde os primeiros registros pós-socráticos, há alguém denunciando uma. Platão acusava os sofistas de uma postura discursiva antiética por não estar pautada em uma concepção filosófica de bem. Antes de Platão, não havia uma ordenação “dogmática” racional que conduzisse as relações entre as pessoas a partir de uma concepção prévia do “verdadeiro” bem e, portanto, do dever. O comportamento humano não poderia ser corrigido segundo uma ontologia ou metafísica prévia que indicasse os critérios necessários para correção e modelação do agir humano.

Mais tarde, perscrutando esse filão da tradição ocidental, Nietzsche sentencia que entrando em crise o pressuposto de toda a ética ocidental, a razão, todo edifício ético no ocidente desmoronou. Recentemente, os diversos discursos sobre a contemporaneidade reforçam o coro daquelas pessoas que sugerem que vivemos um período cuja característica é o questionamento de toda a tradição por intermédio de uma febre reflexiva contagiante.

A idéia de crise deve referir-se à crise de valores, ao que me parece uma dimensão absolutamente humana na história e uma marca da história do pensamento: o questionamento incessante dos valores. A cada geração, é possível ouvir os ecos do comentário inescapável “no meu tempo não era assim... algo se perdeu”. Somos fruto de um conjunto de inúmeras crises de valores analisados e descritos pela historiografia.

Por volta de meados do século 16, as diversas sociedades da Europa passaram por uma crise dos valores morais, marcada pelo conflito entre duas visões do mundo: de um lado, a visão cristã ou católico-feudal, e de outro, transcendente da anterior, de maneira crítica e providencialista, a humanista-renascentista ou moderna. A crise foi essencialmente religiosa, cujo impacto se fez sentir em todas as direções. A crise dos valores morais e estéticos foi apenas uma delas. Da crise das concepções religiosas em competição no renascimento, passamos pela crise do saber narrativo diante da revolução técnico-científica do século 17, e pela idéia de crise permanente engendrada pela associação entre crítica e crise, proveniente das vertentes alemã, francesa e escocesa do projeto iluminista moderno.

Enfim, diagnosticar uma crise de valores como forma de explicar a conjuntura política brasileira é, portanto, não dizer nada e dizer tudo ao mesmo tempo, o que é a mesma coisa.

Sabemos que boa parte do alarde se assenta na legítima preocupação com a corrupção. Um fenômeno tão antigo quanto a crise. Tema de autores romanos, antes de Cristo – como Cícero, crítico implacável de Marco Antônio. Ainda que se possa estabelecer relação entre as duas dimensões da vida humana, valores e corrupção não possuem conexão clara ou evidente de causa e efeito.

Corrupção é um fenômeno difícil de medir e é impossível afirmar com segurança que aumentou nos últimos anos. Afirmações que sugerem que vivemos um agravamento de uma suposta crise moral, em função do aumento dos escândalos de corrupção não estão considerando o fato insofismável de que o que assistimos é o aumento da visibilidade pública desses casos.

Maior visibilidade pública significa que as instituições responsáveis pela “vigilância” estão funcionando. Polícia Federal, Ministério Público, imprensa, entre outros, cumprem, ainda que com excessos aqui e ali, seus papéis em uma democracia. Mesmo o Parlamento, ainda que não sacie nossas altas expectativas reprimidas por “justiça”, cassou recentemente o segundo homem mais poderoso da República e um dos parlamentares mais influentes da casa. Nossa sede de “justiça” não pode nos cegar. Por hipótese, se o Supremo Tribunal Federal vier a absolver algum dos parlamentares cassados pelo Legislativo significará que a instituição não funciona? Se assim for, não precisamos do Supremo Tribunal de Justiça, o julgamento está feito e pronto.

Se há uma crise, ela é uma crise de crescimento, assistimos o aprofundamento de uma democracia já consolidada no Brasil. O encontro entre esse processo incessante de aperfeiçoamento do funcionamento das instituições democráticas e uma cultura da invisibilidade, da inviolabilidade (a sociedade brasileira só recentemente teve acesso às atrocidades realizadas “nos porões” da ditadura militar) não se fará sem choque, sem drama social. Mas é preciso ter muita calma e serenidade nesta hora. Se não compreendermos o quadro geral do momento que atravessamos dentro da história política deste país, embarcando nos diagnósticos alarmistas contidos nas compreensíveis, porém incautas, disputas entre situação e oposição, corremos o risco de prestar um desserviço ao processo em curso.

Continua...

*Cientista político, professor do Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio

Publicado em 26/10/2007.

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